domingo, maio 08, 2011

AF447: outra versão


Pessoal,

O que aconteceu com o voo 447 da Air France? Isso é o que tenta explicar a revista do jornal The New York Times de hoje, domingo, 08.05.2011. A matéria foi traduzida pelo G1. Vale a leitura:

O acidente com o voo 447 da Air France entre Rio de Janeiro e Paris, que deixou 228 mortos em 2009, é o tema de reportagem de capa da "The New York Times Magazine" desta semana. O texto recapitula os principais lances do acidente e da sua investigação e se detém nas perguntas ainda não respondidas sobre o que teria provocado o desastre sobre o Oceano Atlântico. Leia abaixo a íntegra do texto de Wil S. Hyldon, com tradução de Luiz Marcondes:

No final da manhã de 3 de abril, o navio de expedição Alucia foi violentamente sacudido no Atlântico Sul por ventos fortes no convés de popa, enquanto a tripulação se amontoava vestida com capas de chuva e observava um borrão amarelo no horizonte através dos mares cada vez mais pesados. Esse objeto era um submarino-robô de reconhecimento, trazendo 15 mil fotos que eles estavam ansiosos para ver.

Mas ele havia flutuado para a superfície bem na hora em que os ventos aumentaram de velocidade, chegando a 30 nós, e as ondas, a 1,2 metro de altura, atingindo a popa. Era perigoso demais recolher o submarino. Por isso eles observaram e esperaram.
Durante oito dias, o Alucia havia percorrido o oceano perto do local conhecido com L.K.P. (Last Known Position), a última posição conhecida do voo 447, onde caiu o jato da Air France que havia desaparecido em junho de 2009, na metade do caminho entre a América do Sul e a África. Nos quase dois anos seguintes, três outras equipes de busca procuraram por destroços, mas esta era a primeira vez que o Alucia tentava.

O navio levava a bordo três submarinos Remus 6000, alguns dos veículos de busca submarina mais avançados do mundo, que varriam o fundo do mar em turnos de 20 horas, depois vinham à superfície para entregar imagens de sonar à equipe científica do Alucia, que analisava os dados em turnos de 12 horas sem parar. Até agora, eles não haviam encontrado o avião, mas na véspera um cientista apontou algo incomum no monitor e disse: “E o que é isto?” Desde então, o clima a bordo do Alucia ficou tenso.

Todos sabiam o quanto estava em jogo. Este não era um scan do Mar dos Sargaços ou um estudo de amostras de salinidade. As famílias dos 228 passageiros estavam ansiosas por resultados. A busca já durava dois anos e havia custado mais de US$ 25 milhões.

Mais US$ 12 milhões foram gastos com o Alucia este ano, mas os investigadores franceses haviam decidido em silêncio que este ano seria o último. Se o Alucia não achasse o avião, ninguém o encontraria nunca.

O líder da expedição, Michael Purcell, era metade colega e metade chefe, com uma voz rouca, uma risada poderosa e um sarcasmo brincalhão, mas ele conhecia os submarinos Remus tão bem quanto qualquer outra pessoa.

Olhando para a marca desfocada em seu monitor, ele sabia que eles haviam encontrado algo que não era natural. Era estreito e comprido demais para ser algo geológico. Era diferente de tudo mais que havia no fundo do mar. Por outro lado, se aquilo não fosse o avião do voo 447, Purcell sabia que a decepção seria evidente.

Enquanto se preparava o submarino fotográfico para voltar ao fundo para uma missão de 18 horas, Purcell cochichou com outro cientista: “tenho 95% de certeza de que é isso. Mas, cara, se não for serão dois meses e meio muito longos”.

O submarino mergulhou às 21h45. Às 2h, Purcell ainda estava acordado em sua cabine. Ele pegou seu diário. “Cansado, mas sem sono”, escreveu. “Talvez tenha encontrado o avião hoje. Todo mundo está tenso”.

Quatro horas depois, Purcell já estava acordado com o sol nascente e no fim da manhã já estava no convés com a tripulação vendo o Remus voltando à tona ao longe. Pouco depois das 13h, eles içaram o submarino a bordo e conectaram dois cabos grossos a ele para fazer o upload de seus dados nos computadores da sala de controle da missão.

Eles fecharam as cortinas da sala para que a tripulação não cientista não pudesse ver lá dentro e deixaram o link de satélite offline para que as novidades não vazassem. Então, eles se reuniram em torno do monitor do computador enquanto as primeiras imagens do voo 447 começaram a aparecer na tela: turbinas, trem de pouso e partes da fuselagem, todos nitidamente visíveis no fundo do oceano.

Mas, quando eles ligaram o satélite de novo e começaram e enviar as primeiras fotos para os investigadores de acidentes aéreos na França, as implicações mais profundas de sua descoberta começaram a vir à superfície.

Lenda

O desaparecimento do voo 447 foi uma história fácil de transformar em lenda. Nenhum outro jato de passageiros na história moderna havia desaparecido de forma tão completa – sem ao menos um aviso de Mayday, uma testemunha ou mesmo um traço no radar. O próprio avião, um Airbus A330, era considerado um dos mais seguros. Ele estava equipado com um sistema automático de voo que havia sido desenvolvido para reduzir o erro humano ao permitir que computadores controlassem diversos aspectos do voo.

E quando, no meio da noite, no meio do oceano, o voo 447 pareceu desaparecer no céu, foi tentador acreditar numa história muito bem amarrada sobre a arrogância de se construir um avião capaz de voar sozinho, Ícaro caindo do céu. Ou talvez o voo 447 fosse o Titanic, um navio que era impossível de afundar e que agora está no fundo do mar.

Mas o mistério do voo 447 exige respostas de verdade e não apenas para as famílias dos mortos.

Cada avião, assim como cada carro, é constituído de milhares de partes feitas por dúzias de fabricantes, e muitas dessas partes aparecem em diversos aviões. Até sabermos quais das partes falharam no voo 447, se é que houve falha, é impossível saber quais outros aviões podem estar correndo risco.

Jean-Paul Troadec, diretor do Bureau Francês de Investigação e Análises (BEA), que está investigando o acidente, me disse: “caso haja um problema técnico no avião, temos que saber. Mas não é apenas uma questão relativa ao Airbus. Este acidente poderia se aplicar a todo avião”.

Ao longo dos últimos dois anos, surgiram diversas teorias para explicar o acidente, mas ainda não há um consenso claro. Os primeiros relatórios indicavam terrorismo – dois nomes na lista de passageiros pareciam ser iguais aos de radicais islâmicos –, mas essa hipótese foi rapidamente eliminada.

Semanas depois do acidente, enquanto milhares de pedaços do avião eram recolhidos da superfície do oceano e reunidos pelo governo francês num armazém na cidade francesa de Toulouse, alguns experts de aviação especularam se o avião não teria se desmantelado no ar; outros, observando as mesmas provas, insistiram que ele havia caído inteiro e depois se despedaçado.

Existem mistérios envolvendo a rota do avião também. Pouco antes da queda do vôo 447, ele passou por um grupo pesado de nuvens, mesmo com três outros aviões que estavam por perto tendo feito manobras amplas para evitar o mau tempo. Saber por que motivo o 447 voou para dentro das nuvens talvez ajude a explicar o fato de ele nunca ter saído delas.

Nas horas que antecederam a decolagem do voo saindo do Rio de Janeiro, não houve qualquer sinal de problemas mecânicos. Os pilotos que conduziram o avião vindo de Paris algumas poucas horas antes haviam relatado problemas com o painel de rádio no lado esquerdo da cabine, mas os mecânicos fizeram uma avaliação naquele painel e havia outro idêntico do ouro lado. O voo 447 estava, ou ao menos parecia estar, perfeitamente seguro para voar.

Pouco depois das 18h, os passageiros subiram a bordo do avião, a porta da cabine foi fechada e o voo 447 se preparou para decolar. O voo havia sido renumerado como voo 445, mas o avião era o mesmo.

Você corre pela pista num Airbus A330, depois passa voando sobre a água, as luzes do Rio começam a encolher, se transformando numa névoa amarelada sobre a lagoa escura da cidade, e você sobe a 35 mil pés (ou 10 mil metros) rumando para o norte pela beirada do continente antes de rumar para o leste na direção da África.

Todos os voos sobre o oceano passam por certos pontos de verificação, e o mais crítico de todos para o voo 447 era o Ponto Tasil. Quase na metade do caminho entre a América do Sul e a África, ele serve como uma estação de troca de controle de tráfego aéreo. Num dos lados do Tasil, os pilotos se reportam ao Brasil; no outro, ao Senegal.

Na teoria, esse é um lugar onde os controladores de tráfego aéreo de ambos o lados estão de olho, mas, na prática, é com frequência um ponto escuro no radar, longe demais para que qualquer um dos dois continentes possa ver.

Também é um lugar onde rádios de alta frequência não podem ser ouvidos e que cai em cima do Equador meteorológico, onde os ventos dos hemisférios colidem. Em certos dias, eles param e essa paralisia pode ser terrível – os marinheiros chamam-na de "região de calmaria".

Outras vezes, os ventos se unem numa tempestade que cresce até atingir a troposfera, com uma luminosidade violeta se formando em torno dos mastros dos navios e das asas dos aviões – os marinheiros chamam o efeito de Fogo de São Elmo.

Quando o voo 447 começava sua jornada rumo ao Ponto Tasil, os céus pareciam tranquilizadoramente claros. Na cabine, os pilotos conversavam com o controle de tráfego brasileiro, pedindo a altitude a as frequências de rádio. Em algum momento, por volta da meia-noite, a lua que havia estado brilhando pelas janelas desapareceu no horizonte, e o voo 447 ficou sozinho no céu.

À 1h35, os pilotos chamaram o Brasil pedindo sua altitude e plano de voo. Três segundos depois, os controladores chamaram de volta, perguntando quando eles iam atingir o Ponto Tasil. Sete segundos depois, o Brasil chamou novamente. Mais seis segundos, e de novo. O voo 447 havia desaparecido.

Para um piloto, o distante lugar-nenhum do Ponto Tasil é um cone traiçoeiro de silêncio no rádio, mas, para um oceanógrafo como Purcell, existem poucos lugares melhores para estar.

O fundo do mar não é, afinal, só uma grande faixa de areia, ele é coberto por colinas, inclinações e vales, cada uma com incompreensíveis complicações, e dentre essas montanhas submarinas da dorsal oceânica estão os lugares mais misteriosos da Terra.

As montanhas existem desde o início do planeta. Há 250 milhões de anos, quando o supercontinente de Pangea se separou formando sete continentes, as massas de Terra que se alongavam formaram fissuras na costa do mundo, cânions profundos que se separaram e foram preenchidos pelas águas do oceano.

Mas, sob a água, vulcões continuaram a entrar em erupção, enviando magma para cima e formando montanhas de basaltos. Hoje, essa cordilheira faz um ziguezague pelo Atlântico e atravessa o Oceano Pacífico pela parte inferior do Oceano Indico, envolvendo o globo como se fosse uma bola de futebol mal-costurada. Juntas, elas compõem a maior cadeia de montanhas do planeta, com 80 mil km de comprimento e quase que totalmente inexplorada, da altura dos Andes, mas a 3 km de profundidade.

Até as últimas décadas, os equipamentos para explorar essas montanhas não existiam. Os primeiros submarinos podiam ir fundo o bastante, mas o terreno era impossível de ser explorado.

Até mesmo hoje, as máquinas para percorrer a dorsal oceânica representam gastos proibitivos para a maior parte das equipes. No mundo da oceanografia, é comum que se gaste US$ 1 milhão numa expedição, mas uma viagem para as montanhas do Ponto Tasil pode custar 10 vezes esse valor e requerer submarinos tão avançados que poucos cientistas saberiam como utilizá-los.

Nas semanas seguintes à queda do voo 447, as marinhas francesa e brasileira percorreram o oceano perto do Ponto Tasil e encontraram mais de 3 mil pedaços de destroços espalhados pela superfície, incluindo fragmentos de asas, a maior parte do estabilizador vertical e os assentos da cabine.

Eles também encontraram os corpos de 50 passageiros, alguns vestidos e outros ainda usando joias. Mas, à medida em que transportaram os corpos para o necrotério no Brasil e levavam os destroços para um depósito em Toulouse, na França, a superfície brilhante do oceano continuava tão inescrutável quanto um escudo de diamantes.

Quando os investigadores franceses começaram a telefonar para os oceanógrafos e aventureiros do fundo do mar num esforço desesperado para alcançar o fundo, o nome de certa organização foi mencionado repetidas vezes.

O Instituto Oceanográfico Woods Hole é um complexo de casas ladrilhadas e laboratórios de tijolo e depósitos que parecem cavernas espalhados por dois campi no sudeste de Cape Cod.

Nos anos 1970, os cientistas de Woods Hole descobriram fontes hidrotermais fervilhando com vida nas profundezas do Pacífico. Nos anos 1980, descobriram o Titanic sob mais de 3,5 mil metros d'água. Nos anos 1990, seu laboratório submarino ampliou os limites da tecnologia submarina construindo o primeiro Remus em 95, depois adicionando câmeras, novos sensores e computadores mais inteligentes, culminando no Remus 6000.

Nenhuma outra organização tinha mais experiência com o Remus do que cientistas como Purcell, que o havia construído. O diretor de projetos especiais de Woods Hole, David Gallo, é um especialista em montanhas submarinas. Na verdade, ele escreveu sua dissertação sobre a dorsal oceânica.

Quando perguntei a Michel Guerard, vice-presidente da Airbus, como Woods Hole foi escolhida para liderar a busca, ele deu de ombros e disse: “porque ninguém mais no mundo é capaz de fazer isso”.

Para encontrar um dos mais avançados aviões dos céus, eles teriam que viajar para um dos lugares mais primitivos da Terra – e procurar um dos dispositivos mais arcaicos da moderna aviação, uma relíquia que não mudou em quase nada na metade do último século: a caixa-preta.

“É ridículo”, diz Peter Goelz. “Não existe motivo algum para não termos dados sendo enviados em tempo real por streaming.”
Como diretor operacional do Conselho Nacional de Segurança dos Transportes (NTSB, na sigla em inglês) dos EUA no fim dos anos 90, Goelz viu muitos acidentes, mas o desaparecimento do voo 447 o deixou intrigado.

O fato é que, numa era de tecnologia wireless, quando passageiros de alguns jatos podem navegar na internet, as mais preciosas informações sobre o voo ainda estão armazenadas no próprio avião que, por definição, caiu antes que as informações fossem necessárias.

“Já briguei com pilotos por causa disso”, me disse ele. “Eles não querem ninguém monitorando sua performance. Mas todo caixa de loja de conveniência nos EUA tem um monte de câmeras em cima dele. Por que pilotos não?.”

A tecnologia para enviar dados por streaming dos aviões para bases em terra tem algumas limitações. Para transmitir dados de todos os aviões dessa forma pode requerer mais banda de satélites do que o total que existe atualmente em órbita.

Mas algumas empresas encontraram a solução: em vez de fazer o streaming de todos os dados, elas equipam aviões com um sistema que envia o streaming sob demanda. Em caso de problemas, o piloto aperta o botão para começar a enviar dados para baixo e, em certas condições, como nos casos em que há falha do piloto automático, os dados são enviados automaticamente.

As companhias áreas poderiam também simplesmente enviar os dados de voos selecionados, como aqueles que cruzassem locais difíceis – o Himalaia, por exemplo, ou a dorsal oceânica.

Quando mencionei a ideia para Alain Bassil, o oficial chefe de operações da Air France concordou, dizendo: “essa seria uma boa solução”. Depois acrescentou: “esperemos que tenhamos isso em breve”.

No fim de abril, depois de analisar fotografias do Alucia, investigadores franceses voltaram ao Ponto Tasil e enviaram um submarino de recuperação para um ponto onde parecia estar uma das caixas pretas. E a caixa estava mesmo lá, mas os dados haviam desaparecido. Em algum momento, o cilindro que contém os dados aparentemente se soltou. No dia 1º de maio, o cilindro foi encontrado no solo do oceano, e no dia 3 o cilindro da outra caixa preta, que armazena a gravação de voz do cockpit, também foi localizado e recuperado. O material foi entregues ao porão do BEA., em Paris, onde investigadores ainda podem ser capazes de decifrá-lo, mesmo depois de dois anos debaixo d'água.

Mas, mesmo sem os dados da caixa preta, muitas coisas estão claras. A partir das cartas meteorológicas da área próxima ao Ponto Tasil, o histórico de segurança de certas partes do Airbus, os protocolos de vôo da Air France e os arquivos de controle de tráfego aéreo, é possível conectar alguns eventos da queda do vôo 447 que respondem a algumas questões essenciais e levantam outras.

Nos quatro minutos que antecederam a queda, o avião enviou uma série de 24 mensagens de defeito automáticas ao centro de manutenção na França. Dentre elas, a primeira que chamou a atenção aos especialistas envolvidos envolvia a sonda pitot. Os pitots são pequenos cilindros que ficam do lado de fora do corpo do avião para calcular a velocidade do ar.

O custo de uma sonda pitot não é alto – cerca de US$ 3,5 mil cada para o modelo utilizado no 447, um valor que desaparece nos US$ 200 milhões do custo do avião inteiro – mas sua importância não poderia ser maior.

Sem elas, o computador de voo não tem como determinar a velocidade, e o piloto automático se desliga. Isso significa que, se alguma das sondas pitot que ficam expostas ao vento ficar entupida com sujeira ou gelo, o avião de repente irá reverter para o controle manual, forçando os pilotos a pilotar na mão uma aeronave de 230 toneladas em quaisquer que sejam as condições que interferiram com o pitot.

Na teoria, isso não deveria causar uma queda. As sondas podem ser comparadas a velocímetros: mantenha o pé firme no acelerador e tudo ficará bem. Pilotos são treinados para responder a falhas no pitot mantendo altura e empuxo até que as sondas retomem seu funcionamento. A maior parte das vezes, elas acabam voltando ao normal. Mas, durante o período de controle manual, a margem de erro é mínima. Para um jato de passageiros como o A330, a velocidade de cruzeiro ideal é de 560 milhas por hora, ou cerca de 900 km/h. Se você for muito mais rápido que isso, o centro de pressão vai para trás na asa, forçando o nariz para baixo e aumentando a velocidade, até que logo se atinge a velocidade do som. A essa altura, ondas de choque se desenvolvem nas asas, interrompendo o fluxo de ar e reduzindo a sustentação. O nariz do avião é então forçado num mergulho que o piloto pode não conseguir reverter.

Mas, caso você vá devagar demais, o avião perde sustentação e cai. Um avião precisa manter uma velocidade mínima para gerar sustentação. Quanto mais alto ele voar, mais rápido precisa ir. A 35 mil pés, o intervalo entre muito rápido e muito devagar fica ainda menor. Os pilotos chamam isso de “intervalo do caixão”.

Analisar a história recente de falhas de pilotos pode ser perturbador. Peter Goelz, o ex-diretor do NTSB se lembra de vários episódios durante seu mandato, mas um em particular merece destaque: a queda do vôo 301 da Birgenair, em fevereiro de 1996.
“Tínhamos um Boeing 757 que havia permanecido em solo na República Dominicana durante um mês”, disse ele. A investigação concluiu que “durante esse período, um ninho de insetos se formou dentro de uma das sondas pitot. Bom, a tripulação decolou e voou esse avião direto para dentro do oceano”. Todos os 189 passageiros morreram.

A sonda pitot presente no avião que fazia o voo 447 era ainda mais vulnerável do que a maioria, principalmente nas condições encontradas no Ponto Tasil. Elas foram produzidas por uma empresa francesa, a Thales, e o modelo era conhecido como AA. Nos anos antes da queda do voo 447, a Thales AA havia se mostrado problemática em lugares onde as condições meteorológicas fazem com que a água se comporte de maneira diferente.

Em altitudes elevadas e baixas temperaturas, a água às vezes não congela. Em vez disso, ela praticamente "flutua", suspensa no ar. Mas, assim que algo sólido – como um tubo de pitot – passa através da água, o líquido congela para formar gelo. Até que aquecedores possam derreter o gelo, a sonda pitot fica inativa.

Isso pode acontecer com qualquer tipo de sonda pitot, mas, até o verão de 2009, o problema do congelamento do Thales AA era conhecido por ser muito comum. Por que as sondas ainda estavam sendo utilizadas é uma questão polêmica, mas o que sabemos com certeza é o seguinte: entre 2003 e 2008, houve pelo menos 17 casos em que o Thales AA teve problemas tanto no Airbus 330 quanto na sua aeronave irmã, o A340. Em setembro de 2007, a Airbus emitiu um “boletim de serviço” sugerindo que as companhias aéreas substituíssem os pitots AA por um modelo mais novo, o BA, que disseram funcionar melhor sob gelo.

Em resposta, a política oficial da Air France foi substituir os pitots AA de seus A330 “apenas depois que uma falha ocorresse”. Em agosto de 2008, executivos da Air France pediram à Airbus provas de que os pitots BA funcionavam melhor no gelo e, confrontada pela pergunta, a Airbus declarou que não tinha provas. Por isso, removeu tal afirmação do boletim de serviço. Mais cinco meses se passaram.

Durante esse período, outra companhia aérea, a Air Caraibes, teve dois problemas sérios com o Thales AA em seus Airbus 330. O CEO da empresa ordenou que a peça fosse imediatamente removida de sua frota e alertou os órgãos competentes, que começaram a fazer perguntas.

Em suas conversas com a Airbus, os representantes desses órgãos descobriram 17 casos de congelamento e, analisando outros casos, também descobriram que as falhas pareciam estar ocorrendo com maior frequência (9 das 17 ocorreram em 2008). 
Nenhuma das falhas parecia dar sinal de perigo imediato, por isso o Thales AA não foi removido de serviço. Os órgãos responsáveis apenas pediram à Airbus que observassem o problema e fizessem um relatório dele dentro de um ano.

A Airbus só entregou os resultados dos testes em abril de 2009, provando que a BA realmente funcionava melhor no gelo. Nessa época, 19 meses já haviam passado desde que o boletim de serviço havia sugerido a mesma coisa, mas agora a Air France já havia feito algumas mudanças. No fim de abril, a companhia aérea encomendou as BAs para suas aeronaves A330. Em 26 de maio a companhia recebeu a primeira leva de sondas.

Cinco dias depois, quando o voo 447 decolou do Rio, as sondas ainda estavam em um depósito da Air France, e nenhuma delas havia sido instalada. Os três pitots no voo 447 eram Thales AA.

O quartel general da Air France é uma imensa caixa branca situada próxima às pistas do aeroporto Charles de Gaulle. Num dia de primavera, visitei os edifícios para conhecer o CEO da empresa, Alain Bassil, em seu escritório com vista para a pista. Bassil é um homem esbelto, de pouco mais de 50 anos, com um sorriso rígido e um bigode tão bem aparado que parece ter sido desenhado a lápis.

Desde o desaparecimento, do vôo 447, alguns familiares passaram a considerar Bassil e os demais executivos da Air France e da Airbus como um bando de vilões corporativos. No Brasil, por exemplo, eu me encontrei com Maarten Van Sluys, um homem de fala suave que perdeu sua irmã, Adriana, no voo, e que agora lidera a associação oficial de famílias brasileiras.

“Existe um acobertamento”, declarou Van Sluys. “Não há dúvida quanto a isso.” Ele argumenta que os investigadores franceses localizaram os destroços há muito tempo, já sabiam da causa do acidente e que estavam escondendo esses fatos para proteger a Air France e a Airbus. “Eles não querem discutir os problemas relacionados ao voo automático”, disse ele.

Isso pode soar exagerado – e não há evidência de acobertamento dos fatos – mas, entre as famílias do voo 447, há diversas opiniões sobre a investigação francesa, e muitas delas expressam uma sensação de frustração. Em Paris, conversei com Gwenola Roger, cujo namorado, Nicolas Toulliou, a pediu em casamento uma semana antes do acidente num passeio iluminado pela luz da lua perto do Louvre. Sentada tranquilamente no apartamento de uma amiga, Gwenola fez um retratado nobre de seu amor por Nicolas e de sua perda – depois abaixou o tom de voz e disse: “Eles ainda não disseram o que sabem. Um dia saberemos a verdade.”

Nos últimos dois anos, o BEA já emitiu dois relatórios encadernados, que incluíram mais de 200 páginas de dados sobre o acidente. Desde a primeira página, cada relatório deixa claro que a “investigação não foi concluída de modo que culpa possa ser atribuída”. Essa é a declaração formal da agência, de quem se espera uma posição acima do conflito, que relate apenas os fatos.

Tudo isso soa muito razoável, a não ser que você seja um membro da família de uma das vítimas, devastado pela dor, dois anos depois do acidente, e segurando o único relatório oficial do acidente, que parece anunciar desde a primeira linha que qualquer negligência será ignorada. “Se você não quer descobrir de quem foi a culpa”, indaga Van Sluys, “por que investigar?”

Em particular, alguns investigadores da BEA concordam que encontraram coisas que os deixaram perturbados. Depois da última comunicação do avião, por exemplo, 11 horas se passaram antes que uma equipe de busca fosse enviada ao Ponto Tasil. Na primeira hora, os controladores de tráfego aéreo geraram um “voo virtual” em seus computadores, como é prática comum, fazendo com que o avião parecesse passar por sua rota.

Durante as próximas duas horas, controladores fizeram checagens periódicas para averiguar se alguém havia visto o avião e, quando um controlador no Brasil perguntou a um controlador no Senegal se o avião havia chegado ao Cabo Verde, o controlador do Senegal disse que Cabo Verde não havia entrado em contato com eles, mas que isso não era motivo para se preocupar; por isso o controlador brasileiro não se incomodou.

Quando a Air France alertou um satélite de busca-e-resgate, 4 horas e vinte minutos haviam se passado, e foram mais duas horas até que alguém avisasse a equipe de busca do BEA. Uma equipe de busca partiu de Dacar 10 horas depois do último contato via rádio e pelos próximos 45 minutos voou em direção a Cabo Verde, onde concluíram que o avião havia caído.

Quando perguntei ao diretor da BEA, Jean-Paul Troadec, se esse era um tempo de resposta adequado, ele quase pulou da cadeira e gritou: “Não! Não é! O alerta deveria ter sido dado muito mais rapidamente!” Ainda assim, os relatórios do gabinete de Troadec não levam a tal conclusão.

Quando perguntei a outro investigador da BEA, Olivier Ferrante, se é difícil escrever relatórios sem apontar falhas, ele reconheceu que é uma questão de técnica. “Isso requer disciplina na redação de relatórios”, disse ele. “Por exemplo, não queremos usar a palavra 'culpa'. Preferimos 'erro', que tem conotações mais pró-ativas.”

Os investigadores de acidentes aéreos do NTSB afirmam que a abordagem dos americanos é muito diferente. Jim Hall, ex presidente do órgão me disse que os investigadores dos EUA na mesma posição não teriam problemas em reconhecer caso uma equipe de busca levasse muito tempo para agir ou se um avião estivesse voando com peças defeituosas. “Isso não seria um problema para o NTSB", disse ele.

“Se o conselho encontrasse uma peça que precisasse de recall, faria essa recomendação.” Hall explicou que a diferença em relação à França é em grande parte sistêmica: cada acidente deve envolver duas investigações paralelas, uma do BEA para reunir dados técnicos e outra do juiz, para considerar a culpabilidade. Mas, quando o inquérito judicial leva 22 meses para ser aberto, como ocorreu no caso do voo 447, o meio-escopo do trabalho da BEA fica isolado e incompleto.

Hall me disse que a abordagem francesa é “um erro”. Goelz foi menos diplomático. “Sempre houve política envolvida no BEA”, disse ele, lembrando-se do acidente do Air France 4590, que pegou fogo logo depois da decolagem no Charles de Gaulle em 2000.

Depois de uma investigação de quatro anos, o BEA concluiu que o acidente não foi causado por nada no avião francês, mas por uma fina peça metálica que caíra de um voo da Continental minutos antes. Na opinião de Goelz, “desde o início eles queriam encontrar alguém [que não a Air France] para apontar como culpado, por isso a Continental se tornou o alvo”.

O governo francês não apenas investiga a Air France e a Airbus, mas também é um dos principais investidores em ambas. Na verdade, o governo da França, que nacionalizou a Air France em 1945, é hoje proprietário de 16% da Air France-KLM, ações que valem cerca de US$ 830 milhões, e além disso controla 3 das 15 posições na diretoria da empresa. O governo também possui cerca de 15% da empresa matriz da Airbus, que vale mais US$ 3,8 milhões.

É claro que outros países também têm dinheiro investido em suas companhias aéreas e não há provas de que a investigação da BEA tenha sido comprometida. Mas um governo investigar a própria empresa da qual é dono é a definição perfeita de “conflito de interesses”.
E a busca submarina realizada na primavera foi totalmente financiada pela Air France e pela Airbus – como declarou um executivo da Air France a mim, diretamente e “em dinheiro”. (A Air France declarou que não controlava a investigação e que não deu instrução alguma àequipe de busca e isso foi confirmado pelo pessoal do Woods Hole).

Um dia, durante a busca, perguntei a Troadec o que aconteceria se a equipe de Woods Hole pedisse fundos adicionais para algo que as empresas não estavam dispostas a fazer. Troadec disse que “qualquer problema desse tipo deveria ser resolvido de boa fé”. Quando perguntei a Goelz se a NTSB permitira que o alvo de uma investigação controlasse os fundos necessários a ela, ele riu. “Não, não, não”, disse ele. “Nós cobraríamos as partes envolvidas pelas buscas submarinas, mas controlaríamos o dinheiro.”
Na falta de um exame público mais crítico, a Air France fez sua própria avaliação de segurança e implementou suas próprias melhorias, apesar de não ter explicado o que foi descoberto nem o que está mudando ou o motivo.

Isso não significa que a companhia aérea não tenha tido autocrítica. Em dezembro de 2009, cinco meses depois do acidente, a Air France encomendou uma revisão interna de quase todos os aspectos das operações. Mas, quando perguntei a Bassil se outros dois executivos Etienne Lichtenberger, o diretor de segurança de voo e Bertrand Lebel, um vice presidente executivo – poderia explicar as lições que a Air France tirou do acidente, eles declinaram de responder.

“Sem problema”, disse Bassil, “é que ainda não sabemos o que aconteceu”.

“Não sabemos certos fatos”, disse eu.

“Existem poucos fatos”, disse Lebel.

“Existem dois relatórios interinos cheios de fatos”, disse eu.

“Não podemos tirar nenhuma conclusão”, disse Lebel.

“Vocês não chegaram a conclusão alguma?”, perguntei.

“Estamos chegando a conclusões”, disse ele. "E elas serão explicadas.”

Bassil se inclinou para a frente. “Não estamos em posição de dizer mais nada”.

“Pode explicar por que não?”

“Porque não temos mais nada a dizer”, disse ele.

Eu repeti as perguntas sobre as sondas pitot, os boletins de serviço e os atrasos nas buscas, eles responderam ou com tópicos que já haviam preparado ou dizendo que não fariam comentários.

No dia 18 de março, quatro dias antes de o Alucia partir, um magistrado francês finalmente começou a exigir uma investigação judicial do caso. Ao mesmo tempo em que essa investigação era encaminhada ao tribunal, juntaram-se a ele quase uma dúzia de processos civis abertos por familiares das vítimas. Talvez, à medida em que o processo seja levado adiante e os dados das caixas pretas sejam encontrados, uma nova luz seja lançada sobre os processos regulatórios e as decisões corporativas que precederam o acidente.

Nesse meio tempo, um dos únicos lugares nos relatórios do BEA que oferece um pouco de crítica aponta o necrotério brasileiro, para onde os 50 passageiros foram levados para serem identificados.

“Nesta altura da investigação”, diz o relatório, “o BEA ainda não teve acesso aos dados da autópsia".

Numa manhã de domingo, em meados de março, encontrei com o médico Francisco Sarmento, encarregado das autópsias do voo 447. O momento acabou sendo estranho para uma visita. Dois dias antes de eu encontrar com Sarmento, o necrotério onde as autópsias foram realizadas havia sido fechado por inspetores devido a “sangue nas paredes”, “corpos empilhados uns sobre os outros nas gavetas e no chão”, um”forte odor de putrefação” e um desfile de outros horrores, como “um corpo sendo arrastado pelo chão por dois funcionários”. (Desde então, o local já foi reaberto.)

O escritório de Sarmento no Recife era um pouco mais apresentável. O chão era feito de plástico fino que enrugava sob os pés enquanto eu andava, e as janelas exteriores estavam tão fortemente tapadas que era difícil ver o lado de fora, mas o calor tropical entrava pelos locais onde o vidro estava quebrado ou faltando, causando o efeito de uma gigantesca estufa. Era fácil imaginar que tal lugar, uma instalação com fundos insuficientes numa parte pobre do mundo, teria problemas em manter padrões.

Sarmento é um homem alto, de cerca de um metro e noventa e levemente corcunda, com um rosto volumoso e triste, marcado pela preocupação. A crise em seu necrotério o tem impedido de dormir e ele sorriu tristemente ao me oferecer sua mão. Nos acomodamos diante de uma mesa em seu escritório e ele começou a explicar a crise de dois anos antes, quando ocorreu a queda do voo 447.

“Quando ficamos sabendo, tivemos medo”, disse ele. “Não tínhamos espaço para 228 corpos. Havia 33 nacionalidades a bordo, por isso tivemos de cooperar com outros países. Precisávamos de impressões digitais, registros dentários, fotos de tatuagens. Contatamos a Interpol imediatamente e eles nos enviaram duas pessoas para trabalhar aqui e fazer a conexão com os demais países.” Neste momento, Sarmento ergue um dedo com ar de irritação. “Depois de uma semana”, disse ele, “o governo francês ligou e pediu para enviar um representante para observar as autópsias.” Grande parte do trabalho de medicina legal foi feito no em outro local, mas os exames finais dos corpos foram realizados no Recife.

“Quando eles chegaram aqui”, continuou Sarmento, “eram 20 especialistas que queriam fazer a autópsia eles mesmo. Só eles. Mas não íamos permitir isso. Por isso deixei que uma pessoa da Interpol ficasse na sala de autópsia e uma pessoa do governo francês também. É claro que isso virou uma questão diplomática.”

Ele alcançou um grande projetor que havia na mesa e o ligou. O aparelhou começou a zumbir. A parede mais afastada se acendeu e começamos a ver imagens das autópsias. “Tiramos fotos de tudo”, diz Sarmento, passando por fotos de relógios, colares, brincos e anéis ainda conectados a pulsos e pescoços azul-esverdeados. “Pudemos fazer todas as identificações.”

Enquanto as imagens passavam, ele acrescentou. “Todas as autópsias foram observadas pelos franceses e pela Interpol. Nenhum país, nenhuma família reclamou das identificações.”

Depois de algum tempo, Sarmento desligou o projetor e se afastou da mesa. “90% dos passageiros tinham fraturas nas pernas e braços”, disse ele. “Muitos tinham trauma no peito, no abdôme, no crânio. Não achamos ninguém queimado.” Ele se inclinou para frente em seu assento e passou os braços em volta dos joelhos. “Eles estavam assim”, disse ele, imitando a posição dos passageiros e olhando no meus olhos. Depois, ele se sentou rapidamente e estendeu sua mão na mesa.

“Quando eles colidiram”, disse ele, batendo na mesa, “houve fraturas. Acredito que os pilotos tentaram aterrissar na água. Isso faz sentido com as fraturas. Mas, quando os corpos chegaram, os pulmões já estavam em decomposição. Não tivemos condições de descobrir se alguém havia se afogado.”

Isso ficou no ar por um instante enquanto eu considerava o que ele estava sugerindo. “Então é possível que alguns deles ainda estivessem vivos?”, perguntei.

Sarmento fez que sim. “A maioria morreu com o impacto”, disse ele. “Alguns podem ter sobrevivido.”

Alguns dias depois,e m Paris, passei no escritório de Alain Bouillard, o principal investigador de acidentes do BEA. Depois de estudar milhares de pedaços dos destroços, Bouillard chegou á mesma conclusão que Sarmento sobre a aterrissagem do avião. Muitos dos itens recuperados, como carrinhos de refeição, foram encontrados com seu conteúdo comprimido a partir do fundo e pedaços da parte de baixo do avião foram achatados como se tivessem recebido um golpe vindo de baixo.

“Há uma alta probabilidade de que a aeronave tenha caído inteira”, disse Bouillard. “Temos uma razoável certeza disso.”

“O exame médico no Brasil não detectou nenhum sinal de explosão”, observei. “Não”, disse Bouillard. “Temos certeza de que não houve nenhuma despressurizarão durante o voo, porque todas as máscaras ainda estavam nas caixas.”

“O exame médico também indicou que é possível que tenham havido outros sobreviventes”, disse eu. “Acha que sim?”

Bouillard ficou em silêncio. "Eu não sei, é impossível dizer."

É claro que alguns passageiros podem ter sobrevivido ao impacto e depois morrido rapidamente, mas também há a possibilidade de terem vivido mais tempo. A superfície da água perto do Ponto Tasil pode ter temperaturas de até cerca de 26 graus Celsius em junho. De acordo com as tabelas hipotérmicas, uma pessoas pode sobreviver até 12 horas nessas condições antes de ficar inconsciente. A busca pelo avião finalmente chegou ao Ponto Tasil, 13 horas após o acidente. Mas o que aconteceu nessas últimas horas talvez não seja um mistério para sempre.

No Alucia nesta primavera, enquanto os cientistas de Woods Hole examinavam as primeiras fotos do voo 447, eles viram mais do que um trem de pouso, turbinas e asas. Eles também viram corpos de pelo menos 50 passageiros espalhados por uma planície abissal na base das montanhas. Enquanto continuavam as buscas, eles encontraram uma parte da fuselagem danificada não muito longe e grande o suficiente para conter mais passageiros. Membros da equipe me disseram que um silêncio sombrio caiu sobre o navio e à medida em que a notícias dos corpos se espalhava pelo mundo, uma questão perturbadora começou a surgir.
Na água quase congelada, a duas milhas de distância, os corpos seriam extraordinariamente frágeis, mas também estariam conservados mais completamente que os daqueles que foram encontrados flutuando na superfície dois anos antes. Protegidos pela luz e quase que sem nenhuma presença de microorganismos, eles podem oferecer novas respostas não apenas sobre o que aconteceu no voo 447, mas também sobre como foi o fim dos homens e mulheres a bordo. A pergunta é se alguém vai querer saber sobre isso.

Uma manhã em Paris, parei no apartamento de Perola Milman, uma física quântica que perdeu seu marido, Ivan, no acidente. Milman é uma mulher esbelta e atlética que nasceu no Brasil, com pele cor de caramelo e um nariz aquilino. Nos sentamos de frente um para o outro na sala de estar, enquanto seus dois filhos brincavam por perto. Antes do acidente, Perola e Ivan sonhavam se mudar para a cidade francesa. Depois da tragédia, ela finalmente se mudou sem ele.

“Eu não podia mais ficar na nossa casa”, disse ela. “Não podia. Tive que seguir adiante. Por isso simplesmente fui embora. Deixei toda a mobília lá. Todas as minhas roupas. Tudo. Eu tinha de fazer isso.”

Ela virou a cabeça para ver os filhos, depois disse: “Crianças são incríveis, sabe? Uma psicóloga me disse depois do acidente que as crianças não têm senso de morte até os 6 ou 7 anos.

Mas eu questiono isso radicalmente. Quando aconteceu, José tinha 4 anos. E é claro que é uma conversa que nunca vou esquecer. Eu disse a ele, 'olha, houve um acidente com o avião do papai e ele não vai voltar pra casa.' E ele começou a chorar e eu nunca o havia visto chorando antes. Ele dizia 'mas tinha tantas coisas que eu queria fazer pra ele'.”

Os olhos de Milman ficaram marejados de lágrimas, mas ela continuou. “Sou uma cientista. Sei que algo concreto aconteceu com aquele avião. Mas não posso deixar de desejar o mistério. Não quero que tragam os corpos à tona. Não quero que isso tudo venha à superfície. Tenho essa necessidade de virar a página. É muito estranho imaginar que existe esse lugar e que meu marido está lá, vestindo as mesmas roupas que usava na última que o vi... E seu anel... E sua corrente no pescoço...” Sua voz desapareceu e ela sorriu.

No dia seguinte, visitei o apartamento de John Clemes, cujo irmão, Brad, havia partido do Rio num avião que iria se tornar o voo 447, à bordo do qual ele subiu novamente quando descobriu que não poderia entrar no Brasil sem um visto. Depois do acidente, Clemes e Milman ficaram amigos, mas a questão sobre trazer à tona os mortos pairava sobre eles.

Por mais que Milman sentisse o desejo profundo de deixar se marido nas profundezas, Clemes sentia uma obrigação de trazer seu irmão de volta para casa. “É horrível pensar que eles estão perdidos”, ele me disse. “Não existe corpo, não existe adeus, apenas... Sumiu. Nas primeiras semanas eu achei que eles iam achar o avião. Não podia imaginar que eles não iriam conseguir.”

Antes do anúncio feito pelo Alucia no mês passado, essas diferenças poderiam ser colocadas de lado, consideradas distantes e imateriais, mas a descoberta fez com que elas se manifestassem. Depois de menos de 24 horas, a ministra francesa da ecologia e transporte, Nathalie Kosciusko-Morizet, anunciou na televisão que "os corpos serão trazidos à tona e identificados.” Mas ainda não se sabe se será possível manter essa promessa. O BEA afirma que a o navio de recuperação no Ponto Tasil irá tentar localizar a caixa preta primeiro. Numa recente reunião, a ministra declarou que a embarcação tentará trazer um corpo usando o mesmo sistema com garra-e-cesta.

Especialistas em medicina legal afirmam que o procedimento é perigoso e arriscado. Depois de dois anos, os copos podem ser recuperáveis, mas eles terão uma consistência frágil e mole, que pode se desintegrar na garra robótica. Alguns especialistas dizem que os corpos deveriam ser fotografados exaustivamente por câmeras 3D antes que a recuperação da caixa preta tenha início. O processo de recuperação os destroços já pode ter dado inicio a turbulências no fundo do mar.

Mesmo que os corpos possam ser removidos, a questão de se eles devem ou não ser recuperados ainda é difícil de responder. No fim, a decisão é binária: ou todos os corpos são recuperados, ou eles são deixados no fundo. Mas essa é uma escolha que não poderia existir há uma década; é uma que só poderia ter surgido das estranhas circunstâncias do voo 447. Devido ao fato de o avião ser utilizado de forma tão ampla que seu desaparecimento teve de ser explicado. Porque a única explicação está na recuperação da caixa preta – um equipamento arcaico que está caminhando para se tornar obsoleto, mas ainda não estã. Porque as ferramentas e tecnologias para localizar essas caixas nas profundezas da dorsal oceânica estão disponíveis pela primeira vez agora. E assim, para desvendar o mistério mecânico, a conclusão para as famílias terá de esperar. Eles terão de se perguntar se suas mães e irmãos e irmãs voltariam para casa. Eles teriam de se debater com essa possibilidade, cada família sozinha, dividida dentro de si mesma e as vezes também por dentro.

Descendo de um avião no Brasil numa tarde, percebi que havia um e-mail marcado como urgente de Mary Miley, cuja irmã, Anne Debaillon Harris, estava no avião com seu marido, Mike, indo passar duas semanas em Paris. Anne e Mike eram os dois únicos americanos a bordo, e eu havia conversado com Miley talvez uma dúzia de vezes, às vezes por mais de duas horas.

Havia algo em Anne que me fazia voltar a ela. Eu poderia dizer que eram seus olhos, seu sorriso ou algum outro detalhe das fotos dela que eu vi, mas as histórias de Miley sobre sua irmã eram nostálgicas. Ela descreveu a luta de Anne contra o câncer aos 20 e poucos anos, o miniderrame no seu lado esquerdo, suas enxaquecas e ataques de fibromialgia que a acometiam por dias seguidos. Mas eu também ouvi os amigos de Anne falando sobre como no Rio muitos desses problemas pareciam desaparecer, pelo menos o bastante para permitir que Anne, uma garota da cidade de Lafayette, Louisiana, pudesse experimentar uma vida completamente diferente daquela que ela conhecida, passeando por mercados metropolitanos, barganhando com vendedores de rua e aprendendo a sambar. Eu me flagrei explorando seu bairro no Rio e dirigindo pelos morros no lado oeste da cidade para conhecer o bar num terraço onde ela e seus amigos iam à noite, olhando as praias enquanto as ondas se quebravam nas rochas lá embaixo.

E como sempre, eu entrava em contato com Miley para compartilhar com ela o que eu havia visto e ouvido – e para fazer mais perguntas sobre Anne. Agora Miley também tinha uma pergunta para fazer. Depois da queda, a empresa de petróleo de Mike havia fechado o apartamento deles, suas contas, e enviado para casa todos os seus pertences. Com uma exceção: as joias de Anne, ela havia descoberto recentemente, ainda estavam na empresa no Rio. Ela se perguntava se eu poderia trazê-las para ela. Na minha última manhã no Brasil, peguei três caixas de joias de Anne na empresa de petróleo e, alguns dias depois, aterrissei em Louisiana para entregá-las à senhorita Miley. Ela me recebeu na porta com um abraço e nos sentamos juntos diante uma mesa enquanto ela colocava os objetos de Anne na nossa frente – uma anel turquesa, uma bracelete fino, um colar com minúsculas pedras escarlates – dizendo coisas como "oh, Anne, este aqui, não sei não..."

Mas, quando abriu a última caixa, ela ficou congelada. A cor sumiu de seu rosto enquanto ela colocava a mão dentro da caixa, tirando um colar de pérolas. Ela as abraçou contra o peito e apertou os olhos. Depois de um longo silêncio, ela olhou para cima. “São as pérolas da mamãe”, disse. No dia anterior, eu havia ligado para Miley para lhe contar a respeito do voo 447 e sabia que ela ainda estaria lutando com os próprios sentimentos. Durante semanas, ela havia ido e voltado entre emoções diferentes. Um dia, ela dizia: “Não me importo se a encontrarem. Não vou trazer Anne de volta”.

Mas, no dia seguinte, ela me enchia de perguntas sobre como os submarinos funcionavam e se eles tinham mesmo uma chance de conseguir. Agora ela estava sentada tranquilamente com as pérolas. Ela as rolava entre os dedos. “Esta talvez seja a última coisa dela que terei”, disse ela. Seus olhos estavam vermelhos e cansados. “Espero que eles possam trazê-la de volta. Quando não havia motivo para ter esperança, eu não tinha. Mas agora que existe, eu tenho esperança.”



Sérgio

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