Pessoal,
Continuamos com
a história da Panair no blog. O texto é do meu amigo
Gianfranco Beting, editor do
JetSite e diretor de marketing da
Azul Linhas Aéreas. Nesta segunda parte, como a empresa foi fechada pela Ditadura militar para favorecer a
Varig. Leiam...
Nuvens negras
A Panair começou a sofrer alguns acidentes sérios. Na época, início dos anos 50, acidentes aéreos infelizmente faziam parte da vida de quase todas as empresas aéreas. Mas a Panair teve mais do que sua cota. Além de ter perdido 6 Lodestar nos anos 40 e 50, os grandes quadrimotores começaram a acidentar-se em números alarmantes. Em 28 de junho de 1950, o PP-PCG, pilotado pelo Cmte. Eduardo Martins de Oliveira, bateu na aproximação para Porto Alegre, matando todos os seus ocupantes. Integrante do Clube dos Cafajestes, uma espécie de ONG de boêmios "playboys" da Capital Federal, o Cmte. Edu foi imortalizado no samba "Zum-Zum tá faltando Um", de enorme sucesso no cranaval seguinte. O brasileiro é mesmo um povo irreverente...
Mas o fato é que os Connies continuavam caindo. Em seguida, em 1953, o PP-PDA bateu em aproximação noturna para Congonhas: 17 mortos. Em junho de 1955, o PP-PDJ, coincidentemente também em pouso noturno, caiu numa colina próxima ao aeroporto de Asunción, matando 19 pessoas. O último Connie perdido em acidentes fatais foi o PP-PDD, acidentado em outra aproximação noturna, desta vez em Manaus (56 mortos) no dia 14 de dezembro de 1962. Outro terrível acidente, envolvendo o DC-7C PP-PDO (esse da foto acima) também ocorreu (pasme) em aproximação noturna: Em 1º de novembro de 1961, o Douglas bateu na única colina próxima ao aeroporto de Guararapes, Recife, matando seus 51 ocupantes, entre eles o irmão de Luiz Tenan, o Cmte. Hugo Tenan.
Apogeu e declínio
Os acidentes macularam a imagem de segurança da Panair, mas mesmo assim a empresa ocupava uma posição de destaque em nossa aviação. Por exemplo, foi a Panair que levou e trouxe ao Brasil a seleção bicampeã mundial, usando um DC-7 em 1958 para trazer os atletas da Suécia e o Connie PP-PDH para trazer os bi-campeões do Chile. Os DC-7, por sinal, inauguraram em conjunto com a TAP os "Vôos da Amizade", na realidade os primeiros serviços compartilhados na aviação internacional brasileira, ligando o Rio à Lisboa. Em 1959, ao completar 30 anos, a Panair já realizara com êxito 5.827 travessias do Atlântico. Voava para mais de 70 cidades de Beirute à Santiago, numa malha que percorria 110.000 km.
Sem saber, a Panair entrava na década que veria seu triste fim. Já 100% nacionalizada, a empresa recebeu em 21 de março de 1961 dois DC-8-11, de prefixos PP-PDS e PP-PDT, seus primeiros jatos intercontinentais. Pouco tempo depois, em 20 de julho de 1962, chegaram os 4 jatos para etapas médias, encomendados para os vôos domésticos e sul-americanos: os Caravelle 6-R, matriculados PP-PDU/V/X/Z e contando com 64 assentos. Um total de 4 DC-8 foram operados, sendo que um deles, o PP-PDT, foi o primeiro jato brasileiro envolvido num acidente fatal, decolando do Galeão na noite de 20 de agosto de 1962.
Um dos Caravelles, o PP-PDU, em 6 de setembro de 1963 quase colidiu em vôo com outra aeronave próximo a Recife. A manobra evasiva feita pelo comandante salvou os ocupantes, mas não a aeronave. Pousando minutos depois em Recife, constatou-se que na manobra, as tolerância estruturais da aeronave foram ultrapassadas. O Caravelle sofreu deformações que decretaram ali o fim de suas operações.
Vergonha
Problemas operacionais, dívidas crescentes e a inflação - novidade até então - começaram a rondar os hangares da Panair e diga-se de passagem, de todas as outras empresas aéreas. Mas foi então que o sonho se desfez. O presidente da Panair, Celso da Rocha Miranda, despachava normalmente em seus escritórios quando chegou, por telegrama, às 15 horas do dia 10 de fevereiro de 1965, a mensagem que informava a decisão do Governo Federal (assinada pelo Ministro da Aeronáutica Brigadeiro Eduardo Gomes) de cassar o certificado de operação da empresa naquele momento. Numa nota "em tempo" repassava as linhas internacionais para a Varig "em caráter provisório". Cinco dias depois, o Governo decretou a falência da empresa, tomando-lhe as instalações, aeronaves e outros ativos. As linhas domésticas e os Caravelles passavam às mãos da Cruzeiro do Sul. Os DC-8 e rotas internacionais ficavam com a Varig.
A página mais vergonhosa de nossa aviação havia sido escrita, em um conluio entre um Governo Federal totalitário, então sob comando dos militares e uma empresa aérea concorrente, que surpreendentemente operou na noite de 10 de fevereiro todos os vôos que até então eram da Panair como se isso fosse tarefa simples. Nenhum passageiro da Panair ficou no chão: naquela noite, o 707 PP-VJA da Varig partiu para a Europa em substituição ao DC-8 PP-PDS da Panair. Qualquer pessoa que entenda um mínimo sobre aviação sabe que isso, sem prévia preparação, é simplesmente impossível.
Um fato reforça a tese de que tudo estava, na realidade, preparado com muita antecedência. O Cmte. Omar Fontana certa vez me confidenciou que, numa noite ao final de 1964, voando na cabine de um 707 da Varig, percebeu em meio às cartas de navegação, vários mapas e charts de aproximação de aeroportos europeus, destinos para onde somente a Panair voava. Curioso, perguntou aos tripulantes o porquê disto, e obteve como resposta: "Bem, é que no começo do ano (1965) a Varig estará voando para lá".
Dito e feito: uma empresa foi quebrada pelo poder concedente em benefício de outra. Eram os anos de chumbo da ditadura e os executivos da Panair não tiveram a quem se queixar. Cinco mil trabalhadores perderam seus empregos e muitos deles a razão de viver. A justiça pode tardar, mas não falha. Aos 14 dias de dezembro de 1984, os herdeiros da massa falida da Panair ganharam, embora tardiamente, a ação movida contra o Governo: a falência foi considerada pelo Supremo Tribunal como fraudulenta e a União condenada a ressarcir a Panair.
Ressarcir como? Devolver as madrugadas frias nas partidas sob a neve da Europa? Qual o preço fixado para se ver o sol nascer sobre o Atlântico Sul? Depositar qual valor, em conta corrente, para cobrir os custos de saber que seus jatos, a cada momento, estão unindo pessoas, trazendo e levando bens, diminuindo distâncias? Não há bem material ou moeda capaz de pagar pelas experiências tão duramente extirpadas da alma da empresa e de seus funcionários. Mesmo assim, a sentença foi clara: os herdeiros poderiam até retomar da Varig as rotas usurpadas. Pois sim.
Eu, que tinha alguns meses de vida quando do fechamento da Panair, sinto-me pessoalmente ofendido: roubaram as memórias que não tive. Não posso me lembrar de ter visto nenhum dos jatos auri-verdes em operação. A Panair, para mim e para toda uma geração, passa a ser apenas um fantasma, eco distante de um passado não vivido. Só me resta pensar que este episódio constitui a mais infame página da história de nossa aviação comercial e, porque não, de nossa história política. Mas, há um ditado que diz: aqui se faz, aqui se paga. Não dá para pensar diferente quando rememoramos o triste fim da Varig, hoje uma marca moribunda, igualmente engolida por outra competidora. A lei da selva também é encontrada a 35 mil pés.
Da velha empresa, restam os almoços, os encontros anuais dos ex-funcionários, a família Panair. Um grupo de gente com cabelos brancos e sonhos dourados, que não deixa a companhia desaparecer. Reunem-se para celebrar toda a glória e relembrar os feitos de nossa primeira empresa aérea de bandeira.
A Panair foi morta. A livre iniciativa e competição de mercado, alicerces de uma sociedade livre, plural e capitalista (que paradoxalmente o próprio regime militar apregoava defender) foram massacradas naquela tarde de fevereiro. Sobreviveram os funcionários. Sobreviveram dois DC-8 e os Caravelles em condições de voo, operados pela própria Varig e Cruzeiro, até 1975. Mas naquela quarta-feira quente de fevereiro de 1965, morreu a inocência. Morreu uma geração de aviadores. Morreu o Padrão Panair.
Como diria Ariano Suassuna, só sei que foi assim...
Sérgio